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O locatário não está obrigado a pagar o preço pela locação do estabelecimento de snack-bar enquanto o locador não providenciar pela licença administrativa sem a qual o mesmo não pode funcionar

A locação de um estabelecimento comercial abrange, não apenas a transferência temporária e onerosa do gozo dum imóvel, mas, em conjunto, a exploração do estabelecimento nele instalado. Com efeito, o estabelecimento comercial traduz-se numa estrutura material e jurídica que integra, com autonomia, uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas, como os direitos de crédito, clientela e direitos de exploração ou funcionamento, organizadas e funcionalmente dirigidas à realização de uma atividade lucrativa. E nessa universalidade integra-se também a licença administrativa de autorização de funcionamento do estabelecimento, como elemento essencial da sua estrutura orgânica e funcional, pois que sem ela não é possível a laboração. Assim, a prestação do locador, no âmbito do contrato de locação de um estabelecimento de snack-bar, integrava também o dever de entrega do estabelecimento em condições de permitir a sua pacífica exploração, o que está dependente ou condicionado pela existência de licenciamento para esse ramo de negócio. Mas tendo o locador feito a entrega sem o licenciamento necessário ao normal funcionamento, e persistindo nessa falta, cumpriu defeituosamente a sua obrigação de entrega do bem para o fim convencionado a que se destinava. Ora, o cumprimento defeituoso integra um dos modos de não cumprimento das obrigações que permite ao credor da prestação imperfeita o recurso à exceção do não cumprimento do contrato, pelo que, face à falta da licença e do consequente constrangimento à laboração, o locatário não é obrigado a pagar o preço sem que aquela sanação tenha lugar.

Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 14 Out. 2014, Processo 5831/11

JusJornal, N.º 2018, 4 de Novembro de 2014. JusNet 5631/2014

 

 

 

Texto

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 

1. – “AA” instaurou acção declarativa contra “BB – … Lda.” e CC, pedindo que se declarasse a resolução do contrato de locação de estabelecimento que celebrou com a 1ª Ré, por falta de pagamento das rendas relativas aos meses de Agosto a Dezembro de 2010, Janeiro e Fevereiro de 2011 e que esta fosse condenada a entregar-lhe o estabelecimento locado, bem como ambas as Rés – a 2ª enquanto fiadora – condenadas a pagarem-lhe, solidariamente, as rendas mensais vencidas e não pagas, no valor de 7.000,00EUR, bem como das que se venceram até à entrega do estabelecimento, tudo acrescido de IVA às taxas sucessivamente em vigor.

Alegou, para tal, que locou à 1ª Ré, por contrato escrito celebrado em 31/10/2009, o estabelecimento de snack-bar melhor caracterizado na p. i., pelo prazo de cinco anos, com início a 01/11/2009, renovável por períodos sucessivos de três anos, mediante a contrapartida de 12.000,00EUR/ano, a pagar em duodécimos mensais de 1.000,00EUR, acrescidos de IVA à taxa legal; que a 1ª Ré deixou de pagar os montantes mensais relativos aos meses de Agosto a Dezembro de 1010, Janeiro e Fevereiro de 2011; que ela e a 2ª Ré são solidariamente responsáveis pelo pagamento deste valor e dos duodécimos vincendos, por esta última ter intervindo no dito contrato como fiadora da locatária.

As Rés contestaram e deduziram reconvenção.

Ali, alegaram que o Autor lhes garantiu, aquando da outorga do contrato de locação, que o estabelecimento dispunha de licença de utilização, o que vieram a verificar, em Agosto de 2010, não corresponder à verdade; que perante esta situação a 1ª Ré deixou de pagar as rendas desde então, direito que entende assistir-lhe ao abrigo do disposto pelo 428º do CCiv. – excepção do não cumprimento do contrato -, até que o A. lhe faculte a licença do estabelecimento.

Na reconvenção, alegaram que mantém interesse na continuação da vigência do contrato e pediram que o A. fosse condenado a desenvolver todas as actividades necessárias para a obtenção da licença de utilização do estabelecimento.

Subsidiariamente, para o caso de tal se não revelar possível, pediram a resolução do contrato e a condenação do Autor a indemnizá-las dos danos resultantes do não gozo do locado pelo período contratado, designadamente, por perda de clientela e lucros cessantes, a liquidar em momento posterior à sentença.

Pediram ainda a condenação do A. no pagamento de 4.291,47EUR, mais juros, a título de reparação de prejuízos sofridos pela 1ª Ré em consequência de avaria na instalação eléctrica do imóvel que servia o estabelecimento e obrigou ao seu encerramento durante 4 dias. 

O Autor replicou, alegando que não tinha alvará de utilização mas possuía uma declaração camarária que dela dispensava o estabelecimento, sendo que a falta dessa licença nunca impediu a 1ª Ré de explorar o estabelecimento, pelo que não lhe assiste o direito de não pagar as rendas enquanto não obtiver o alvará e que existiria abuso na invocação da excepção do não cumprimento do contrato, na medida em que a Ré, apesar da falta de licença, continua a explorar o estabelecimento e a obter proventos da sua actividade.

Foi, a final, proferida sentença que decidiu:

“Julgar a acção procedente e consequentemente:

– Declarar a resolução do contrato de locação de estabelecimento celebrado entre o autor AA e as rés BB – … Lda. e CC em 31 de Outubro de 2009.

– Condenar a Ré BB – … Lda. a entregar ao autor AA o estabelecimento locado descrito em 1. dos factos provados, livre de pessoas e bens, com excepção dos que nele se encontravam quando lhe foi entregue pelo autor na sequência da outorga do referido contrato de locação.

– Condenar as rés, BB – … Lda. e CC a pagarem solidariamente ao autor AA, a quantia de EUR7.000, 00 (sete mil euros) correspondente ao valor das rendas mensais de EUR1.000,00, cada, vencidas desde Agosto de 2010 até à data da instauração da acção, assim como da quantia correspondente ao valor das rendas mensais vencidas desde então e vincendas até à entrega do locado, tudo acrescido de IVA às taxas legais sucessivamente em vigor.

Julgar a reconvenção parcialmente procedente e consequentemente:

– Condenar o reconvindo AA a pagar à reconvinte BB ¬’;… Lda. a quantia que em liquidação de sentença se apure como correspondente aos supra referidos prejuízos sofridos pela reconvinte a título de perda de bens consumíveis; de cancelamento de jantares já agendados e à quebra perda de lucros relativos ao período de 4 dias em que o estabelecimento locado esteve encerrado”.

Mediante apelação da Ré, o Tribunal da Relação alterou a sentença “nos seguintes termos:

a)Declaram-se improcedentes os pedidos de resolução do contrato celebrado entre as partes e os de condenação das rés – nos termos enunciados supra – na entrega ao autor do estabelecimento locado e no pagamento ao mesmo das quantias atinentes às rendas vencidas desde Agosto de 2010 e das que se vencerem até entrega daquele, com a consequente absolvição da ré de tais pedidos;

b) Mantém-se a improcedência do segmento do pedido reconvencional apreciado no item 4 do ponto IV;

c) Mantém-se o que ali se decidiu quanto à outra parte da reconvenção”. 

Agora é o Autor que pede revista, visando a reposição da decisão da 1ª Instância, para o que argumenta nas conclusões da alegação:

I. O Acórdão recorrido parte de uma premissa errada para fundamentar todo o seu raciocínio que termina com a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância e que se prende com a (des)necessidade da licença de utilização para o estabelecimento comercial em crise nos presentes autos.

II.Não obstante as notificações enviadas para a Recorrida em 23/08/2010, mencionada no n° 10 dos factos provados, e as notificações enviadas para a Recorrente, nomeadamente em 29/08/2008 e 21/01/2009, conforme resulta do n° 28 dos factos, o certo é que a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim nunca encerrou o estabelecimento em crise nos presentes autos.

III.A mesma Autarquia que notificou inicialmente a Recorrente e posteriormente a aqui Recorrida para proceder ao licenciamento do estabelecimento comercial, emitiu a declaração que se encontra junta a fls. 62 dos presentes autos, datada de 26 de Março de 2009 (ou seja, com data posterior às duas primeiras comunicações), assinada pelo próprio Presidente da Câmara Municipal, Dr. DD, em que afirma que a utilização do estabelecimento não está sujeita a licenciamento.

IV.Encontrando-se a Recorrente na posse de tal documento, emitido pela entidade responsável para a emissão das licenças de utilização, não existindo qualquer justificação para a alteração da posição assumida pela Autarquia, não pode a Recorrente ter outra convicção senão que o estabelecimento comercial aqui em crise se encontra isento de licença de utilização.

V.Conforme se encontra provado nos presentes autos, após aquela notificação à Recorrida o estabelecimento continuou a funcionar sem qualquer limitação, conforme sucedeu em situações anteriores

VI.Aliás, conforme decorre do n° 25 dos factos provados, quando o contrato com a Recorrida foi celebrado, o estabelecimento já se encontrava em funcionamento há muitos anos, mais concretamente, há cerca de 30 anos!!!

VII.O que a Recorrente transmitiu à Recorrida foi aquilo que a autarquia havia declarado, que o referido estabelecimento se encontrava isento de licenciamento, nomeadamente da licença de utilização.

VIII. Facto do inteiro conhecimento da 2ª Ré, CC, directora da Recorrente aquando da celebração do contrato em crise nos presentes autos e companheira do legal representante da Recorrida e que conjuntamente com ele explorava o bar.

IX.Atendendo à prova documentada nos autos, designadamente a declaração supra referenciada, terá de se concluir que a utilização do estabelecimento em crise nos presentes autos não necessita de qualquer licenciamento, conforme decorre do documento emitido pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim.

X.Motivo pelo qual, não se encontra a Recorrida legitimada para opor à Recorrente a excepção de não cumprimento prevista no art. 428. ° do CC, impondo-se a revogação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no que concerne à revogação do contrato de cessão de exploração.

XI.De Agosto de 2010 até Junho de 2011, a Recorrente deixou de pagar não só as rendas, mas também a água, gás e luz que consumia, obrigando a Recorrida a pagar os consumos de água, gás e luz que a Recorrente fazia.

XII. Durante cerca de um ano, a Recorrida não pagou qualquer renda, não obstante continuar a usufruir do estabelecimento.

XIII. Por sua vez, a Recorrente, uma associação desportiva sem fins lucrativos cujo escopo social é, entre outros, a formação de jovens atletas, não recebeu da Recorrida qualquer renda e ainda pagou os consumos de água, gás e electricidade que esta consumiu.

XIV. Conforme bem refere o Acórdão recorrido um dos pressupostos para que se aplique o instituto da excepção de não cumprimento prende-se com a necessidade das prestações em causa serem reciprocas.

XV. Não existindo dúvidas que estando em crise nos presentes autos um contrato de locação de estabelecimento cujo regime legal está previsto no artigo 1109.º e seguintes do Código Civil e, na ausência de regulamentação própria, a solução terá de ser encontrada por recurso às regras que regulam o arrendamento comercial.

XVI.Pela mesma ordem de ideias, havendo equiparação legal de ambos os contratos (locação de estabelecimento e arrendamento comercial) também quanto ao sinalagma há identificação entre os mesmos, uma vez que tanto no contrato de locação como no contrato de arrendamento comercial a prestação do senhorio, no contrato de arrendamento, e do cedente/locador, no contrato de locação de estabelecimento, são no primeiro o gozo do prédio e, no segundo, o gozo do prédio em conjunto com a exploração do estabelecimento comercial ou industrial, sendo a contraprestação, em ambos, o pagamento das rendas.

XVII. Assim, ainda que se admita a necessidade da licença para o legal exercício da actividade do estabelecimento comercial em causa nos presentes autos, certo é que a Recorrida recebeu do Recorrente um imóvel devidamente equipado para o exercício da referida, conforme contratado, tendo explorado o estabelecimento e do mesmo retirado proveito económico, até à data que entendeu, nunca tendo ficado inibida de explorar o estabelecimento por falta de licença de utilização.

XVIII. Utilizar a inexistência da licença para argumentar uma alegada inexistência do próprio estabelecimento comercial, após ter retirado, durante anos, os correspondentes benefícios da exploração do mesmo, raia os limites do absurdo!

XIX. Ficou demonstrado que, apesar da inexistência da licença de utilização e da consequente inexistência da licença para o exercício da actividade, a Recorrida não ficou privada do gozo e da exploração do estabelecimento comercial, pelo que não tinha legitimidade para deixar de cumprir a prestação a que estava obrigada, o pagamento das rendas, nos termos do art. 428.º do Código Civil.

XX. Não existe uma correlação directa entre a falta de licença de utilização e o não pagamento da renda para que a Recorrida pudesse opor ao Recorrente a excepção de não cumprimento, essa correlação só existiria se houvesse um impedimento no gozo do estabelecimento comercial.

XXI. A questão que se coloca é se atenta a factualidade presente nos autos, nomeadamente o facto da Recorrida manter o gozo do locado e do respectivo estabelecimento comercial, daí retirando todos os benefícios que retiraria se existisse a licença de utilização faz com que esta tenha direito a opor à Recorrente a excepção de não cumprimento, eximindo-se do pagamento da totalidade da contraprestação a que se obrigou em detrimento de uma Associação Desportiva, a aqui Recorrente, com escopo social e que, apenas com muitos esforços, consegue fazer face às obrigações a que está vinculada.

XXII. A resposta a esta questão só poderá ser negativa.

XXIII. No caso em análise, atendendo que a Recorrente cumpre na totalidade a sua prestação, o gozo do locado, com a excepção verifica da na não entrega da licença de utilização, a contraprestação, pagamento integral da renda, não pode ser recusada pela Recorrida, pois esta recusa é manifestamente contrária à boa-fé tendo em vista as circunstâncias do caso em concreto, sobretudo da relatividade da parte que falta prestar e da inexistência de qualquer consequência para a Recorrida.

XXIV. É certo que, como bem referiu o Tribunal de Primeira Instância a exploração do locado possa ser vista como precária (admitindo-se a necessidade de licença de utilização do estabelecimento comercial), uma vez que, de acordo com notificação recebida, a Recorrida ficou a saber da possibilidade do estabelecimento ser encerrado.

XXV. A Recorrida jamais foi privada do gozo do locado devido à falta da licença de utilização, caso em que lhe assistiria, então, o invocado direito ao não pagamento da renda.

XXVI. Quer a sentença proferida pelo Tribunal da Primeira Instância quer o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto são unânimes em absolver a Recorrente do pedido de indemnização efectuado pela Recorrida pelos prejuízos sofridos pela falta do alvará de utilização.

XXVII. De resto, a própria Recorrida no seu pedido de indemnização pela falta do alvará de utilização se refere a eventuais danos “se o estabelecimento vier a encerrar por determinação das autoridades competentes”, o que demonstra que o mesmo ainda não encerrou.

XXVIII. Estarmos a equiparar a falta de licença de utilização à efectiva privação do gozo do estabelecimento comercial, com todas as consequências e danos inerentes, é exagerado, o que implica que a aplicação da excepção de não cumprimento no caso sub judice seja desproporcionada.

XXIX. E não se diga que, a licença de utilização, em si, integra o próprio estabelecimento comercial, e por isso não foi concedido o pleno gozo do estabelecimento comercial à Recorrida, pois como já foi sobejamente defendido, a inexistência de licença de utilização não impediu a Recorrida de explorar o estabelecimento, dele retirando lucros e proveitos, não tendo o mesmo sido encerrado por falta da referida licença.

XXX. Não se encontrando preenchidos os pressupostos para a aplicação do instituto da excepção de não cumprimento, não se encontra a Recorrida legitimada ao não pagamento das rendas devidas pela ocupação e exploração do estabelecimento comercial.

XXXI. Encontrando-se provado que a Recorrida não efectua o pagamento das rendas desde Agosto de 2010, sempre poderia a Recorrente, conforme fez, lançar meio do preceituado no art. 1083°,n º3 do Código Civil, por remissão do n.º 1 do art. 1109º do mesmo diploma, com vista à resolução do contrato de locação por mora no pagamento das rendas, sendo judicialmente declarada.

XXXII. O Acórdão recorrido ao revogar a decisão do Tribunal da primeira Instância violou entre outros, o artigo 428° e 1083° do Código Civil.

A Recorrida apresentou contra-alegação em defesa da manutenção do julgado.

2. – Do conteúdo das conclusões da alegação do Recorrente, delimitadoras do objecto do recurso, resultam colocadas as seguintes questões:

– falta de legitimidade da Ré para opor ao Autor a excepção de não cumprimento,

– por o estabelecimento locado se encontrar isento de licença de utilização, não ocorrendo o correspondente incumprimento ou, subsidiariamente,

– por não existir reciprocidade entre as prestações consubstanciadas no pagamento das rendas e na existência da licença para o exercício da actividade.

3. – Vem definitivamente assente o quadro factual que se transcreve. 

1. A Autora é dona e legítima proprietária de um estabelecimento de snack-bar sito na sede das suas instalações na Rua …, sem número de polícia, na Póvoa de Varzim.

2. A 1ª Ré é a locatária do estabelecimento acima melhor identificado destinando-se tal locação à exploração e funcionamento do snack-bar aí existente.

3. A 2ª Ré é a fiadora da 1ª Ré na locação de estabelecimento celebrada entre Autora e 1ª Ré.

4. Na qualidade invocada no item 1, a Autora, na pessoa do seu representante legal, locou à 1ª Ré, também na pessoa do seu representante legal, que assim o tomou, o aludido snack-bar, por contrato escrito celebrado em 31 de Outubro de 2009.

5. Incluíram-se neste contrato, a utilização pela 1ª Ré de todos os móveis, máquinas e utensílios que compunham o aludido estabelecimento, intervindo como outorgante neste contrato, a 2ª Ré que se obrigou na qualidade de fiadora perante todas as obrigações da 1ª ré decorrentes do contrato, e expressamente renunciou ao princípio da excussão prévia.

6. Tal “contrato de locação de estabelecimento”, foi celebrado pelo prazo de cinco anos, com início no dia 1 de Novembro de 2009, e termo em 31 de Outubro de 2014, renovável por períodos sucessivos de três anos, se nenhuma das partes entretanto o denunciasse.

7. A contrapartida monetária contratualmente acordada pela referida locação de estabelecimento foi convencionada em EUR 12.000,00 (doze mil euros) anuais, repartidos em duodécimos mensais de EUR 1.000,00 (mil euros), valores estes a que acresce o NA à taxa legal, a pagar no primeiro dia útil do mês a que respeitar, na sede da Autora, contra recibo.

8. Pelo contrato em causa, acordaram as partes no ponto nº 2 da cláusula primeira, que caberia, ainda à Ré o pagamento das despesas dos consumos que faz de água, luz e gás.

9. A renda convencionada não sofreu, ainda, até ao momento, qualquer actualização.

10. A 23 de Agosto de 2010, a 1ª Ré foi surpreendida com a recepção de uma carta registada enviada pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, cujo assunto é (a) proposta de cessação de utilização referente ao estabelecimento comercial do qual é locatária [Consta deste documento, designadamente, que “A ordem de cessação da utilização, nos termos e com os efeitos previstos no nº 1 do art. 109° do Decreto-lei nº 555/99, de 16 de Dezembro (JusNet 270/1999), fundamenta-se no facto de, no local em referência se encontra instalado, em funcionamento e aberto ao público um estabelecimento de restauração e bebidas, sem que possua a devida licença” – doc. fls.61].

11. A Autora enviou as Rés a declaração emitida pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim na qual o estabelecimento em causa se encontra dispensado de licença municipal [Das als. B. e C. de tal declaração, datada de 26/03/2009, consta, respectivamente, “que o imóvel construído no âmbito desta empreitada incluía um espaço destinado à instalação de um estabelecimento de bebidas” e “que, uma vez que a obra de construção do imóvel vindo de identificar foi levada a efeito por esta autarquia, esteve a mesma dispensada de licenciamento municipal, nos termos da alínea b) do n° 1 do artigo 3° do Decreto-Lei n° 445/91, de 20 de Novembro (JusNet 101/1991) (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro (JusNet 126/1994)), pelo que a sua utilização não está igualmente sujeita a licenciamento nos termos do mencionado diploma legal” – doc. fls. 62].

12. A 2ª Ré solicitou ao Presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim fotocópia simples do processo relativo ao estabelecimento comercial [O teor deste documento é o seguinte: “Exmo. Senhor, venho pelo presente solicitar fotocópia simples do processo D/1 096/08 – Not. 4416/10].

13. Em finais de Fevereiro de 2011, a 1ª Ré enviou uma carta registada com aviso de recepção ao Autor, na qual dava conhecimento ao mesmo dos danos sofridos, resultantes do corte de abastecimento de energia, no período de 6 de Dezembro de 2010 a 9 de Janeiro de 2011.

14. Desde Agosto de 2010 as Réus não pagaram à Autora as rendas.

15. A 1ª Ré obrigava-se a efectuar as obras indispensáveis à conservação e manutenção, bem como à limpeza do locado.

16. O mesmo sucedendo em relação à 2ª Ré.

17. Sendo a Autora AA conhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, tem de satisfazer os seus compromissos mensais de pagamento de salários a atletas, treinadores, professores, funcionários e pagamentos a fornecedores, bem como continuar a prestar o serviço que há mais de 60 anos presta à comunidade local.

18. Tornando-se essencial o pagamento das rendas pelas Rés.

19. Não fosse o pagamento das rendas pela Ré, não teria a Autora celebrado tal contrato, atento o facto desse espaço poder ser-lhe útil para outros fins mais adequados e adaptados à sua finalidade social.

20. A falta do recebimento do valor das rendas tem causado ao Autor dificuldades no pagamento dos seus encargos, cuja situação financeira se tem vindo a agravar.

21. Aquando da celebração do contrato de cessão e exploração/locação, o Autor informou as Rés através da sua direcção que o imóvel onde se encontra o estabelecimento comercial locado tinha sido construído pelo Município e, nessa medida, não tinha carecido de quaisquer licenças. 22. E informou as rés de que, por ser um edifício construído por entidade pública, se encontrava dispensado de licenciamento municipal.

23. A 1ª Ré outorgou o contrato, enquanto locatária, convicta de que o locado se encontrava licenciado para o exercício da actividade a que contratualmente se destinava, o que foi determinante para a celebração do contrato.

24. A 1ª Ré, logo que iniciou a laboração no estabelecimento, afixou no mesmo, de forma bem visível, o documento junto a fls. 62 assinado pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de Póvoa de Varzim, cujo teor se dá por reproduzido, que lhe foi fornecido pelo autor.

25. Quando o contrato foi celebrado entre Autora e Ré, o estabelecimento já estava em funcionamento há muitos anos.

26. A 1ª Ré tomou conhecimento da falta de licença de utilização do estabelecimento locado, pelo menos, desde a recepção da carta referida na al. J) [ora no n° 10].

27. Foi nessa sequência que a 1ª Ré solicitou ao Presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim a documentação referida em M) [ora n° 12] relativa ao estabelecimento comercial locado.

28. Pelo menos, desde aí a 1ª Ré ficou a saber que a C. M. da Póvoa de Varzim havia instado o autor a legalizar o estabelecimento para a pretendida utilização como estabelecimento de restauração, nomeadamente através da carta datada de 29.8.2008 que constitui o documento junto a fls. 352 a 353 cujo teor se dá por reproduzido, e havia comunicado ao autor a intenção da autarquia em proceder ao encerramento do estabelecimento locado por falta de licença de utilização, nomeadamente através das cartas que constituem os documentos juntos a fls. 356, 370 e 264, cujo teor se dá por reproduzido, datadas de, respectivamente, 21.1.2009, 24.3.2010 e 23.8.2010 [Do doc. de fis. 352-353 destacam-se os seguintes excertos: ” … cumpre informar que: 2.1. as obras de construção do edifício foram promovidas pela autarquia – (. . .} – e estão, de acordo com o disposto na alínea a) do n° 1 do art. 7° do DL 555/99, de 16.12 (JusNet 270/1999), ( …), isentas de licença administrativa; 2.2. o alvo da pretensão – emissão de alvará de utilização de estabelecimento de restauração – carece de licenciamento específico para a instalação, pelo que o requerente deverá apresentar um pedido de licença de obras de instalação do estabelecimento, em conformidade com o definido no art. 9° do DL 555/99 (…), devidamente instruído com os elementos definidos no art. 11° da Portaria 232/2008, de 11.03 (JusNet 497/2008) e em cumprimento do disposto no Regime Jurídico da Instalação e do Funcionamento dos Estabelecimentos de Restauração ou de Bebidas (DL 234/2007, de 19.06 (JusNet 1457/2007))”. Do doc. de fls. 356 consta, nomeadamente, que “fica V. Exa. notificado para, querendo, no prazo de dez dias, a contar da recepção do presente oficio, dizer o que se lhe oferecer acerca da projectada ordem de cessação de utilização ( …) do estabelecimento sito na Rua …, s/n, nesta cidade” e que “caso não se pronuncie no prazo supracitado, a ordem de cessação de utilização assume carácter definitivo”. No doc. de fls. 370 diz-se, designadamente, que “notifico V. Exa. a cessar a utilização do estabelecimento ( … ), devendo a mesma ocorrer no prazo de 15 dias” e que “caso não cesse a utilização do estabelecimento, no prazo fixado, será determinado o despejo administrativo ( …)”. O doc. de fls. 264 é igual ao de fls. 61, já referido no n° 10 supra].

29. Pelo menos a partir da consulta de tal documentação referida em M) [ora n° 12), a 1ª Ré ficou a saber que o estabelecimento poderia ser encerrado compulsivamente pela autarquia ou por outras entidades competentes, a qualquer momento.

30. A 1ª Ré deixou de efectuar o pagamento das rendas desde Agosto de 2010, invocando para o efeito que a autora não lhe facultava a licença de utilização do estabelecimento locado.

31. Autora e lª Ré acordaram que os atletas do AA fariam as suas refeições que são custeadas pelo Clube, no estabelecimento comercial locado e, em contrapartida, o valor destas mesmas refeições seria mensalmente descontado no valor da renda mensal estipulada, o que ocorreu até Agosto de 2010.

32. A partir de Setembro de 2010, os atletas do AA deixaram de fazer as suas refeições no estabelecimento comercial locado.

33. O autor ainda não emitiu nem apresentou às RR. as facturas correspondentes às mensalidades de Agosto de 2010 em diante.

34. O estabelecimento comercial explorado pela 1ª Ré recebe a energia eléctrica a partir de um quadro eléctrico que alimenta energeticamente todo o edifício do Autor, o qual se encontra na sala das máquinas das piscinas do AA e no mesmo Edifício.

35. O quadro eléctrico servia tanto o Autor como a 1ª Ré.

36. O quadro eléctrico em questão deixou de funcionar durante cerca de 30 dias situados entre os meses de Dezembro de 2010 e Janeiro de 2011, em consequência do que o estabelecimento locado deixou de receber energia eléctrica, o que lhe causou a perda de bens consumíveis susceptíveis de deterioração em valor não apurado.

37. Em consequência do referido na resposta aos artigos 27° e 28°, a 1ª ré teve de cancelar diversos jantares já agendados, com o que teve uma perda de rendimentos em montante não apurado; teve uma quebra de facturação de montante não apurado pelo período de 1 mês, devido ao encerramento das piscinas do AA e sofreu uma perda de lucros, em valor não apurado, relativos ao período de 4 dias em que o estabelecimento locado esteve encerrado.

38. A data de 31 de Outubro de 2009, a 2ª Ré, CC, participava, na qualidade de directora, nas reuniões da direcção do autor, as quais se realizavam semanalmente.

4. – Mérito do recurso.

4. 1. – Licença de utilização do estabelecimento. Incumprimento do Autor.

A Recorrente acusa o acórdão impugnado de partir de uma premissa errada para fundamentar todo o seu raciocínio, no tocante à necessidade de licença para utilização do estabelecimento comercial, pois que terá desconsiderado a circunstância de a Câmara Municipal ter emitido uma declaração – a fls. 62 dos autos – em que se afirma que a utilização do estabelecimento não está sujeita a licenciamento.

Assim, conclui (cfr. conclusão IX), “conforme decorre desse documento … a utilização do estabelecimento em crise “não necessita de qualquer licenciamento”.

Está em causa a afirmação dos Julgadores da 2ª Instância em que se escreve: “Não vem questionado e está provado que o estabelecimento cuja exploração foi cedida pelo autor à recorrente se destinou à actividade de restauração (snack-bar), que o alvará ou a licença de utilização era e é necessário para o exercício dessa actividade (é imposição do art. 10º do DL 234/2007, de 19/6 (JusNet 1457/2007)), que aprovou o regime de instalação e funcionamento dos estabelecimentos de restauração e bebidas que anda vigora) e que o autor (a quem competia diligenciar pela obtenção dessa licença e a quem a competente autarquia a vinha exigindo desde finais de Agosto de 2008, quando o estabelecimento ainda era explorado por ele) não diligenciou pela obtenção do respectivo alvará de utilização (…)”.

Em contraponto, a convocada declaração de fls. tem o conteúdo útil mencionado no facto 10., ou seja, declara-se «Que o imóvel construído no âmbito desta empreitada incluía um espaço destinado à instalação de um estabelecimento de bebidas» e “Que, uma vez que a obra de construção do imóvel vindo de identificar foi levada a efeito por esta autarquia, esteve a mesma dispensada de licenciamento municipal, nos termos da alínea b) do n° 1 do artigo 3° do Decreto-Lei n° 445/91, de 20 de Novembro (JusNet 101/1991) (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro (JusNet 126/1994)), pelo que a sua utilização não está igualmente sujeita a licenciamento nos termos do mencionado diploma legal».  

O Recorrente não tem ponta de razão.

Com efeito, como bem sabe, e consta do facto 28., foi informado pela Câmara Municipal, pela carta datada de 29.8.2008, que constitui o documento junto a fls. 352 a 353, que: “2.1. as obras de construção do edifício foram promovidas pela autarquia – (. . .) – e estão, de acordo com o disposto na alínea a) do n° 1 do art. 7° do DL 555/99, de 16.12 (JusNet 270/1999), ( …), isentas de licença administrativa; 2.2. o alvo da pretensão – emissão de alvará de utilização de estabelecimento de restauração – carece de licenciamento específico para a instalação, pelo que o requerente deverá apresentar um pedido de licença de obras de instalação do estabelecimento, em conformidade com o definido no art. 9° do DL 555/99 (…), devidamente instruído com os elementos definidos no art. 11° da Portaria 232/2008, de 11.03 (JusNet 497/2008) e em cumprimento do disposto no Regime Jurídico da Instalação e do Funcionamento dos Estabelecimentos de Restauração ou de Bebidas (DL 234/2007, de 19.06 (JusNet 1457/2007))”.

Não é, assim, possível, como pretende o Autor, estabelecer confusão ou identificar o licenciamento municipal das obras da iniciativa das autarquias locais, cuja isenção (de licença de construção e de utilização) está prevista no art. 3º-1-b) do DL 445/91, de 20-11 (JusNet 101/1991) (Regime de licenciamento de obras particulares), invocado na declaração de fls. 62, assim como no art. 7º-1-a) do DL 555/99, de 16–12 (Regime Jurídico da urbanização e edificação – RJUE), por um lado, com o licenciamento – concessão de licença ou de autorização para estabelecimento de restauração ou de bebidas – exigido pelo DL 234/2007, de 19-6 (JusNet 1457/2007) (Regime jurídico da instalação e do funcionamento de restauração ou de bebidas – RJIFERB), licença a conceder também nos termos do citado RJUE, como decorre do disposto nos arts. 6º-2 e 10º do mesmo  RJIFERB, .

Como esclareceu a Câmara Municipal, não está em causa a isenção de licença administrativa, que se mantém, mas a falta de “licenciamento específico para a instalação” do estabelecimento de restauração, a impedir a continuação da sua utilização. 

Numa palavra, não há qualquer dúvida que a falta de licença ou autorização é, como bem se refere no acórdão, a atinente à instalação ou modificação do estabelecimento, prevista nos aludidos 6º a 12º do DL 234/2007, respeitando, por expressa remissão desses preceitos do mesmo DL, os procedimentos previstos no DL 555/99.

Não merece, portanto, qualquer censura a premissa de que partiu a decisão recorrida, improcedendo a conclusão do Recorrente segundo a qual o estabelecimento não precisa de qualquer licenciamento.

4. 2. – Excepção de não cumprimento do contrato.

O Recorrente sustenta não existir reciprocidade entre as prestações contratuais, que são o gozo do prédio em conjunto com a exploração do estabelecimento e o pagamento das rendas e não entre a existência da licença para o exercício da actividade

Para tanto, argumenta com o facto de o contrato de locação de estabelecimento se encontrar actualmente previsto no art. 1109º do Código Civil, pelo que, havendo equiparação legal entre os contratos de locação de estabelecimento e de arrendamento comercial, também quanto ao sinalagma há identificação entre os mesmos.

Por isso, mantendo-se a Ré no gozo do locado, jamais poderia opor como exceptio a retenção das rendas.

Ter-se-ia como aceitável a posição proposta pelo Recorrente se, como o mesmo pretende, tudo se reconduzisse a uma questão de cumprimento das prestações recíprocas de um típico contrato de arrendamento comercial.

Aí, sim, não caberia ao locador, mas ao locatário obter, a licença de utilização para a específica actividade que se proporia exercer no local arrendado.

Tem-se entendido, de facto, ser de proceder à distinção entre licença de utilização para o exercício de uma actividade genérica (v.g., habitação, comércio, indústria, etc.) e a licença de utilização ou de funcionamento para o exercício de qualquer espécie desse género (restaurante, farmácia, consultório médico, etc.).

A primeira é obrigação do senhorio por se tratar de licenciamento do edifício para necessidades comuns a certo tipo de utilização, enquanto a segunda, em regra equivalente a um alvará para o exercício de certo ramo (que pode implicar a realização de obras internas, instalações especiais e definição de áreas de compartimentos) cumpre a quem pretende exercer a actividade específica, em caso de arrendamento, ao arrendatário (cfr. ac. de 19-02-2008 – proc. 08A194 (JusNet 546/2008), em que o aqui relator interveio como adjunto).

Acontece, porém, que como do referido preceito consta, a locação de estabelecimento (cessão de exploração comercial) não abrange apenas a transferência temporária e onerosa do gozo dum imóvel, mas inclui, em conjunto, a exploração de um estabelecimento nele instalado, regendo-se pelas regras do arrendamento, com as necessárias adaptações.

Cede-se, em conjunto e a um tempo, o gozo dum imóvel e o de um estabelecimento que, como universalidade, é coisa móvel, tudo mediante ma retribuição unitária que engloba a renda em sentido estrito e a contrapartida dos móveis e direitos que constituem o estabelecimento.

Ora, de um tal objecto contratual híbrido, bem se vê que tanto a prestação de cedência do gozo como a de retribuição não coincidem com as típicas do contrato de arrendamento, na medida em representam um misto que abrange, mediante contraprestação única, o gozo do prédio e o da universalidade de direito. 

Pode, assim, concluir-se que o sinalagma do preço locativo, que se apresenta como uma prestação com a natureza de obrigação indivisível, é o misto de cedência do gozo do imóvel (arrendamento) mais, de forma também indissociável, o da exploração do estabelecimento.

Não pode, pois, perder-se de vista essa especificidade, para, em conformidade, dever aceitar-se que, em sede de reciprocidade de prestações, se está para além do linear vínculo do contrato de locação, tal como o define o art. 1022º C. Civil e ressalva o art. 1109º-1, parte final.   

O estabelecimento comercial traduz-se numa estrutura material e jurídica que integra, com autonomia, uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas (direitos de crédito, clientela e direitos de exploração ou funcionamento) organizadas e funcionalmente dirigidas à realização de uma actividade lucrativa

Nessa universalidade que constitui o estabelecimento comercial integra-se a licença administrativa de autorização de funcionamento, como “elemento essencial da sua estrutura orgânica e funcional, pois que sem ela não é possível a laboração” (ac. STJ, de 24-01-2012 – Proc. 239/07.0TBSTS.P1.S1 (JusNet 303/2012)).

No caso, a licença em falta, para a valência que foi cedido o estabelecimento, constitui, a nosso ver, um dos seus elementos incorpóreos essenciais, por sem ela ser impossível a continuação da exploração e imposto o encerramento, cuja existência deve ser assegurada pelo locador.

Sem ela, só pode manter-se uma laboração em termos precários, a cada dia dependente da efectiva intervenção das autoridades administrativas, no sentido da materialização do anunciado encerramento.

E tal precaridade acontece porque o Autor, enquanto devedor na obrigação de titularidade da licença, não realizou a prestação a que estava vinculado nem se propôs realizá-la, assim incumprindo o seu dever contratual – art. 762º-1 C. Civil.

Ao assim agir, o Autor cumpriu defeituosamente a prestação a que estava vinculado e, enquanto não ocorrer a perda de interesse da Ré, eventualmente conducente à resolução do contrato, encontra-se em mora – arts. 432º-1, 801º-1 e 2, 808º e 804º-2, todos do C. Civil.

Com efeito, a prestação do Recorrente integrava o dever de entrega do estabelecimento em condições de permitir a sua pacífica exploração, o que está, como se disse, dependente ou condicionado pela existência de licenciamento para o ramo de negócio para que a cessão teve lugar, como elemento integrante do objecto contratual, na sua globalidade.

Ao fazer a entrega, e persistindo mantê-la, sem o licenciamento necessário ao funcionamento normal do estabelecimento, o Recorrente incumpriu, ou cumpriu defeituosamente, a sua obrigação de entrega do bem para o fim convencionado e a que se destinava – arts. 406º-1, 762º-1 e 763º-1 e 1031º-b) do mesmo Código (cfr. neste sentido, o ac. STJ, de 13-7-2004, CJ XII-II.145).   

A Ré não pediu, apesar disso, a não ser subsidiariamente, a resolução do contrato, declarando manter interesse na sua manutenção, antes se propondo cumprir a sua prestação quando a Autora puser termo ao incumprimento em que se encontra, ou seja, invocando a excepção de não cumprimento do contrato.

Requisitos da excepção de não cumprimento do contrato, enquanto meio de defesa temporário ou excepção dilatória de direito material, são, como do art. 428º C. Civil resulta, a inexistência de prazos diferentes para cumprimento das prestações recíprocas e o não cumprimento ou oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação, sendo que, deduzida a excepção, ela só poderá ser afastada pela prova de que o excepcionante estava obrigado a cumprir em primeiro lugar, de que o contraente a quem é oposta já cumpriu a sua obrigação ou de que ofereceu o seu cumprimento simultâneo (J. J. ABRANTES, “A excepção de não cumprimento do contrato”, pg. 91; CALVÃO DA SILVA, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 335).

Ao opor a exceptio o excipiente suspende a execução da prestação a que está adstrito até à realização da contraprestação pela outra parte, colocando-se numa posição de recusa provisória de cumprimento, que o direito acolhe como uma causa justificativa de incumprimento em homenagem ao princípio da simultaneidade do cumprimento das obrigações recíprocas que nos contratos sinalagmáticos são também reciprocamente causais.

Consequentemente, oposta a excepção, o excipiens vê suspensa a exigibilidade da sua prestação, suspensão que se manterá enquanto se mantiver a posição de recusa do outro contraente que deu causa à invocação da exceptio.

Havendo vínculo sinalagmático a excepção é oponível desde que um dos contraentes não esteja obrigado por lei ou pelo contrato a cumprir a sua obrigação antes do outro.

Como se deixou já dito, as Partes têm direito ao exacto e pontual cumprimento e ao dever e o direito de cumprir, tudo nos precisos termos convencionados, devendo a prestação ser realizada integralmente e não por pares, excepto se outro for o regime convencionado – arts. 406º-1, 762º-1 e 763º-1 C. Civil.

O cumprimento defeituoso integra um dos modos de não cumprimento das obrigações, que permite ao credor da prestação imperfeita o recurso à excepção do não cumprimento do contrato (P. ROMANO MARTINEZ, “Cumprimento Defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada”, 324).

Não se tratando de um incumprimento total, mas de uma prestação executada deficientemente, ocorre a denominada “exceptio non rite adimpleti contractus”.

No caso sob análise, a prestação do Recorrente, enquanto locador do estabelecimento, revelou-se uma prestação defeituosa ou mal executada, pois que não correspondeu à efectivamente devida.

É, assim, seguro que o Recorrente, a quem a excepção foi oposta, não cumpriu a prestação a que estava adstrito contratualmente, encontrando-se demonstrada a desconformidade entre a prestação devida e a realmente efectuada.

O Recorrente executou materialmente a prestação mas, apesar disso, não cumpriu a obrigação a que estava vinculado, pois que não foi satisfeito o interesse do credor.

A prestação devida, ou seja, a entrega do estabelecimento licenciado, em cumprimento da obrigação, devia ter sido efectuada ao tempo em que o foi defeituosamente.

Por outro lado, porque, como também se deixou dito, não se cuida de um mero contrato de arrendamento, não se tem por afastado o sinalagma contratual.

Ora, estando em causa o direito ao cumprimento exacto e pontual, o contraente que cumpre defeituosamente não tem o direito de exigir a respectiva contraprestação enquanto não sanar os defeitos da sua prestação, só adquirindo o direito àquela quando, prévia ou simultaneamente, se oferecer para reparar o mau cumprimento, ou seja, quando se proponha satisfazer a prestação devida e acordada ab initio (neste sentido, por todos, cfr. ac. STJ, de 28/3/06, Proc. 06A415, ITIJ).

Entretanto, porque está em mora relativamente à eliminação ou sanação da falta e enquanto o estiver, o locador incumpridor pode ver ser-lhe oposta pelo locatário a exceptio non rite adimpleti contractus, o qual não é obrigado a pagar o preço sem que aquela sanação tenha lugar, no que se revela ainda a função coerciva da exceptio (vd. CALVÃO DA SILVA, ob. cit., 336).   

Resta dizer que, a uma inexecução parcial, como é a que deve corresponder a um cumprimento defeituoso, só poderá, em regra, ser oposta uma recusa de prestação também parcial.

Com efeito, o que aí pode estar em causa é o restabelecimento do «equilíbrio das prestações, ainda por cumprir, as quais ficariam novamente sujeitas à regra do cumprimento simultâneo» (cfr. A. e ob. cit., 110, citando ESPÍN CÁNOVAS e VON TUHR).

Ora, porque assim é, postula o princípio do equilíbrio das prestações (art. 237º C. Civil) que a parte da prestação recusada se apresente em relação de proporcionalidade com a parte incumprida pela outra parte.

Referindo-se especificamente à exceptio non rite adimpleti contractus, J.J. ABRANTES (ob. cit., 115-116), que se acompanha, escreve que “normalmente ela apenas poderá encontrar-se justificada em termos meramente parciais, os bastantes para repristinação do equilíbrio sinalagmático”, para terminar, afirmando que, no cumprimento parcial ou defeituoso, “o devedor apenas poderá recusar a prestação na parte proporcional ao incumprimento do outro contraente. É um dos aspectos da relevância do princípio geral da boa fé (…)”    

Acontece, porém, que, no caso, está predominantemente em causa o constrangimento da contraparte a que complete a sua prestação, de natureza juridicamente indivisível e insusceptível de cumprimento parcial, traduzindo-se o seu incumprimento num iminente risco de impossibilidade de execução do contrato, com a perda total do gozo do imóvel e da exploração do estabelecimento, por facto que lhe é exclusivamente imputável e susceptível de gerar perda de interesse passível de fundamentar o direito à resolução (cfr., sobre o ponto, VAZ SERRA, BMJ 67º-38 e J.J. ABRANTES, cit., 111).

Nesta conformidade, perante a oferta de uma prestação parcial defeituosa, deverá ter-se por legitimada a recusa do pagamento da contraprestação convencionada até que seja oferecida, por inteiro, a prestação devida, sem que se mostrem desrespeitados os princípios da proporcionalidade, da adequação e da boa fé a que se aludiu supra.

O acórdão impugnado não merece, assim, a censura que lhe vem dirigida.

4. 3. – Resolução do contrato.

Reconhecido o direito da Recorrida a opor a exceptio nos termos declarados, reconhecida fica a subsistência do contrato, encontrando-se, consequentemente, prejudicada a apreciação do direito à resolução do contrato, formulado pelo Autor e Recorrente, por falta de pagamento das rendas (mora da Ré). 

4. 4. – Respondendo às questões inicialmente enunciadas, pode, em síntese conclusiva, afirmar-se que:

Não são confundíveis as licenças de construção e de utilização, e respectivo regime de isenção, previstas no art. 3º-1-b) do DL 445/91, de 20-11 (JusNet 101/1991) e no art. 7º-1-a) do DL 555/99, de 16-12 (JusNet 270/1999), por um lado, e o licenciamento de autorização para estabelecimento de restauração ou de bebidas, exigido pelo DL 234/2007, de 19-6 (JusNet 1457/2007), a conceder também nos termos do DL 555/99, como decorre do disposto nos arts. 6º-2 e 10º do DL 234/2007, por outro lado.

O contrato de locação de estabelecimento comercial apresenta-se com objecto contratual híbrido, em que tanto a prestação de cedência do gozo como a de retribuição não coincidem com as prestações típicas do contrato de arrendamento, na medida em representam um misto que abrange, mediante contraprestação única, o gozo do prédio e o da universalidade de direito.

Por isso, o sinalagma do preço locativo, como prestação com a natureza de obrigação indivisível, é o misto de cedência do gozo do imóvel (arrendamento) mais, de forma também indissociável, o da exploração do estabelecimento.

Na universalidade que constitui o estabelecimento comercial integra-se a licença administrativa de autorização de funcionamento, cuja existência deve ser assegurada pelo locador, como “elemento essencial da sua estrutura orgânica e funcional, pois que sem ela não é possível a laboração”.

Ao fazer a entrega do estabelecimento, e persistindo mantê-la, sem o licenciamento necessário ao funcionamento normal do estabelecimento, o locador incumpre, ou cumpre defeituosamente, a sua obrigação de entrega do bem para o fim convencionado e a que se destinava, encontrando-se demonstrada a desconformidade entre a prestação devida e a realmente efectuada.

Estando em causa o direito ao cumprimento exacto e pontual, o contraente que cumpre defeituosamente não tem o direito de exigir a respectiva contraprestação enquanto não sanar os defeitos da sua prestação, só adquirindo o direito àquela quando, prévia ou simultaneamente, se oferecer para reparar o mau cumprimento, ou seja, quando se proponha satisfazer a prestação devida e acordada ab initio.

Porque está em mora relativamente à eliminação ou sanação da falta e enquanto o estiver, o locador incumpridor pode ver ser-lhe oposta pelo locatário a exceptio non rite adimpleti contractus, o qual não é obrigado a pagar o preço sem que aquela sanação tenha lugar, no que se revela ainda a função coerciva da exceptio.

Perante a oferta de uma prestação parcial defeituosa, em que está predominantemente em causa o constrangimento da contraparte a que complete a sua prestação, de natureza juridicamente indivisível e insusceptível de cumprimento parcial, traduzindo-se o seu incumprimento num iminente risco de impossibilidade de execução do contrato, com a perda total do gozo do imóvel e da exploração do estabelecimento, por facto que lhe é exclusivamente imputável e susceptível de gerar perda de interesse passível de fundamentar o direito à resolução, deverá ter-se por legitimada a recusa do pagamento da contraprestação convencionada até que seja oferecida, por inteiro, a prestação devida, sem que se mostrem desrespeitados os princípios da proporcionalidade, da adequação e da boa fé.

5. – Decisão.

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:

 – negar a revista;

 – confirmar o acórdão recorrido; e,

 – condenar o Recorrente nas custas.

Lisboa, 14 Outubro 2014

DL n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966 (Código Civil) (JusNet 1/1966) art. 428; art. 762.1; art. 1109

 

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